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As histórias por trás dos caquinhos que coloriram subúrbios brasileiros

Em meio aos inúmeros artigos que já escreveu, o engenheiro civil Manoel Henrique Campos Botelho nunca viu um texto seu gerar tanta repercussão quanto “O mistério do marketing das lajotas quebradas”. Publicado há mais de três anos na revista do Instituto de Engenharia, até hoje a história por trás dos caquinhos de cerâmica contada por ele reverbera por aí, com ajuda das redes sociais, blogs e revistas.

— Parece que os caquinhos ficaram no coração das pessoas, lembrando suas infâncias — desconfia ele, que também é autor do livro “Concreto armado eu te amo”.

O recurso com jeito de casa da avó e cara de subúrbio é cheio de histórias que partem de meados da década de 1940, quando São Paulo era servida por duas indústrias cerâmicas principais. Segundo Botelho, entre os produtos fabricados, havia um tipo de lajota quadrada com tamanho aproximado de 20×20 centímetros. Eram produzidas nas cores vermelha, amarela e preta, sendo a primeira a mais comum e barata. Esse material era usado para piso de residências de classe média ou do comércio, e a falta de zelo no processo industrial causava muitas muitas quebras. Sem utilidade aparente, elas acabavam enterradas.

O BELO É CONTAGIANTEBotelho conta que a engrenagem dos caquinhos começou a girar quando operários sem dinheiro para comprar as lajotas passaram a aproveitar esses pedaços para o acabamento de suas casas. Embora não se saiba exatamente o alcance dessa história, a verdade é que a técnica cobriu muitos muros e pedaços de chão pelo Brasil, não sendo exclusividade de São Paulo. Afinal, como escreve o engenheiro em seu artigo, “o belo é contagiante e a solução começou a virar moda”. Além de casas, os caquinhos cobriram muros e pisos de escolas, lojas e fábricas. A procura era tanta, que houve momentos em que os restos não eram mais suficientes.

— Quando acabou o refugo, as cerâmicas quebravam os ladrilhos e vendiam os cacos que tinham enorme procura. Principalmente, os vermelhos e depois os amarelos, negros e brancos. Estes eram partidos para dar homogeneidade visual aos pisos avermelhados — diz Botelho, acrescentando que a mania prosperou até esbarrar em um problema de ordem natural. — Um dia, a produção de ladrilhos parou pelo esgotamento da matéria-prima, o barro chamado tecnicamente de argila.

Com origem acidental ou não, o arquiteto e professor adjunto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ, William Bittar, observa que a natureza desse trabalho está intimamente associada à história da arquitetura brasileira.

— Está relacionada à utilização de produtos manufaturados em revestimentos (pastilhas, azulejos, vidrotil), muito comum a partir da década de 1950. Era um gosto novo, colorido, aproveitando a potencialidade da emergente indústria nacional — comenta ele. — Também está presente em marcos da arquitetura moderna, em painéis de azulejos ou pastilhas elaborados por artistas como Paulo Werneck, Athos Bulcão e Anísio Medeiros, que eram simplificados na arquitetura popular.

Ao lançar um olhar sobre toda essa história, o arquiteto Lauro Cavalcanti, que escreveu o livro “Arquitetura kitsch suburbana e rural”, ao lado de Dinah Guimarães, acredita que essa utilização da cerâmica também pode guardar referências trazidas de Portugal. A própria pedra portuguesa não deixa de ser um caquinho, ora pois.

HISTÓRIA AOS PEDAÇOS

Na leitura de Cavalcanti, a força que os pedaços de cerâmica ganharam no subúrbio também está conectada ao desejo pela cor e pela exuberância. E o que antes era uma necessidade, ao longo dos anos virou padrão estético. Fora isso, destaca ele, a aplicação foi ganhando utilizações cada vez mais elaboradas.

— Muitas vezes, as pessoas contavam a história da sua vida por meio da casa. Era muito comum imigrantes portugueses associarem sua vinda ao Brasil com a chegada dos primeiros navegantes lusos. Então, eles faziam reproduções de caravelas e da cruz de Malta em meio aos mosaicos — ilustra.

Segundo os especialistas, a técnica caiu em desuso nos anos 1980. Mas num passeio pelo clássico reduto de azulejos e pisos no Centro do Rio, entre as ruas General Caldwell e Frei Caneca, ainda é possível encontrar alguns heróis da resistência. Os lojistas afirmam que a fabricação dos pisos originais foi deixada de lado há anos, mas muitos asseguraram bons lotes das peças em garimpagens pelo país ou compram a partir de demolições. Só não é possível encontrar em caquinhos.

— Tem que levar a peça inteira e quebrar por contra própria. Vendemos muito para moradores de Santa Teresa, que querem fazer reparos em pisos de imóveis antigos — afirma o gerente da loja Arte Brasil, Anselmo Scarpitta.

Como as peças de cerâmica viraram artigo cada vez mais raro no mercado, o que outrora foi solução para quem tinha pouco dinheiro começa a ganhar ares de luxo. Para fazer uma boa compra no Centro do Rio, é preciso pechinchar. Encontrada em diversos formatos, as peças podem ser adquiridas por valores cujo metro quadrado vai de R$ 60 a R$ 260, para falar só da versão vermelha.

Quem busca as versões amarela e preta precisa bater perna. Vendedores relataram que o calcário que possibilitava essas pigmentações acabou há muito tempo. Não há nem similar. Mas algumas lojas conseguiram garantir estoques em cor, como o Museu dos Azulejos.

— O preto é o mais difícil. Já o amarelo temos em quantidade porque conseguimos uma boa compra em Brasília — afirma o dono da loja, Maurício Júnior.

Segundo ele, o vermelho ainda é encontrado em abundância porque chegou a ter a fabricação retomada, sendo encerrada de vez em 2013.

MATERIAL ALTERNATIVO

Por outro lado, quando chega alguém na loja buscando os famosos caquinhos, Júnior aproveita para vender seu peixe. É que ele comprou uma fábrica de pisos hidráulicos e afirma que dá para conseguir um resultado muito próximo com esse material.

— Sempre aparece alguém com essa demanda. Este é um jeito prático de resolver — diz.

Ainda que hoje seja pouco utilizado, o piso em cacos não morreu. A franquia paulista Los Hermanos de paletas mexicanas apostou nele como marca registrada de suas lojas.

— Queríamos que as pessoas tivessem uma experiência afetiva, enquanto degustassem nossos produtos. E esse piso traz aquela boa memória da infância na casa da avó e da bisavó — explica o diretor comercial do negócio, Marco Menzani, acrescentando que a escolha gerou muito retorno positivo do público.

Segundo um dos arquitetos que assinaram o projeto, Kanô Ferreira, o trabalho exigiu dedicação da equipe.

— Tivemos que buscar em lojas que comercializam cerâmicas antigas e de restauro ou em estoques que nunca foram abertos. Foi um processo minucioso de busca e investigação, até encontrarmos o fornecedor certo. Compramos tudo o que tinha — relata.

SUCESSO NA TV

Quem também experimentou a boa fama dos caquinhos foi a arquiteta Kuo Tsun Te, que trabalhou por mais de 30 anos na TV Globo. Na temporada de 2014 do Zorra Total, ela utilizou uma plotagem de caquinhos no chão de uma casa que remetia ao subúrbio carioca. Choveram elogios.

— Era um cenário entupido de elementos, mas o que mais chamava atenção era o piso — recorda-se. — É um elemento muito forte, porque foi muito utilizado. Está no imaginário do brasileiro, principalmente na região Sudeste.

Fonte: O Globo

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