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Norte do Líbano abriga obra esquecida de Oscar Niemeyer

Entre as mais vívidas lembranças da infância de Mira Minkara nos anos 1980 estão as traquinagens no enorme parque abandonado entre o mar e as montanhas de Trípoli, no Norte do Líbano. Era naquele descampado que a molecada da cidade gostava de andar de bicicleta, apostar corrida e brincar de esconde-esconde. As construções de concreto tinham formas arredondadas, curiosas. E as curvas, tão características do trabalho do mais famoso dos arquitetos brasileiros, eram o tobogã preferido de meninas e meninos. Somente anos mais tarde, essa guia turística de 34 anos descobriu que seu playground favorito era uma obra monumental — e inacabada — de Oscar Niemeyer.

Pouco conhecida no Brasil, a Feira Internacional do Líbano desafiou seu próprio criador, passou por uma guerra civil e resistiu ao tempo com algumas fissuras. Mas, em ruínas, o megacomplexo idealizado pelo arquiteto brasileiro em 1962 agora vem rachando os moradores da segunda maior cidade do país. Incapazes de definir se a obra é uma arte ou um trambolho, os libaneses tentam dar alguma utilidade ao espaço hoje renomeado como Feira Internacional Rashid Karami, uma homenagem ao político de Trípoli que ocupou por oito vezes o cargo de premier do Líbano.

— É um lugar muito grande, estranho, em suspenso. As pessoas aqui em Trípoli não ligam para ele, não sabem quem foi Oscar Niemeyer e acham o complexo um elefante branco. Mas eu gosto dele assim mesmo, tem seu charme. As construções dele nos anos 1960 remetem a uma época de modernidade e esperança para o Líbano — conta Mira Minkara, que hoje organiza, pelo Facebook, visitas guiadas ao local.

O apego de Mira se explica. Para muitos, a década de 1960 foi a era de ouro de um Líbano onde a capital, Beirute, era chamada de “Suíça do Oriente Médio”. Depois de escaramuças nacionalistas entre muçulmanos panarabistas e cristãos que ameaçaram jogar o país na guerra civil em 1958, os libaneses viveram anos de investimentos estrangeiros, crescimento econômico e turismo internacional. E foi nesse contexto de afluência que o governo libanês decidiu que era hora de investir no Norte do país, sobretudo Trípoli, a cidade portuária que, ao longos dos séculos, fora uma importante província da era das Cruzadas e dos períodos Mameluco e Otomano. Foram, então, buscar no remoto Brasil, a mais de 10 mil quilômetros de distância, o único homem capaz de dar à cidade o tão sonhado ar futurista e modernista do século XX — Oscar Niemeyer.

— Ele foi escolhido porque tornou-se muito conhecido logo depois da construção de Brasília. O modernismo encantava os arquitetos daquela época e, além disso, Niemeyer era comunista. A arquitetura libanesa de então via nele um “camarada” — explica o arquiteto Fares el-Dahdah, da Universidade Rice, em Houston, nos Estados Unidos, e um dos conselheiros da Fundação Oscar Niemeyer.

Dahdah conta que Niemeyer desembarcou no Líbano em 1962 para estudar o local. Passou um mês no país trabalhando naquele que seria um empreendimento faraônico: 15 edificações espalhadas por uma área de 1 milhão de metros quadrados — o equivalente a quase oito estádios do Maracanã. O pavilhão de exposições principal foi coberto por uma sinuosa marquise de 750 metros de extensão cuja curvatura lembra a do Plano Piloto de Brasília, ou mesmo o prédio do Instituto Central de Ciências da Universidade de Brasília (UnB), também desenhados pelo arquiteto. Ele idealizou, ainda, o Museu do Espaço, heliporto, anfiteatro aberto, um imponente pórtico de entrada, boulevards e jardins capazes de abrigar administração, restaurantes, salas de leitura e áreas de lazer para crianças.

Em um artigo publicado na revista “Módulo” em outubro daquele mesmo ano, Niemeyer, porém, se queixou. Ele queria o complexo junto às águas azuis do Mar Mediterrâneo. “O projeto apresentou inicialmente o problema da escolha do local, que deveria ter se baseado no estudo urbanístico da região a fim de que ela se integrasse organicamente na vida e na futura expansão dessa cidade. Parece que a fixação do local não decorreu de um estudo profundo e apurado do assunto, limitando-se a conveniências especificas do empreendimento, com relação a áreas, conformação do terreno, etc, o que excluiu sua localização junto à praia, a nosso ver, mais conveniente”, escreveu o arquiteto.

Nada disso, porém, tirou o carinho dele por aquele lugar.

— Ele guardava muitas boas lembranças do período no Líbano. O porte das estruturas em concreto era o maior desse gênero naquela época. A obra é completamente aliado à tecnicidade. Os detalhes mostram o quanto a beleza e a tecnologia foram aliados. Não foi só uma coisa plástica. Ele entendia de concreto — avalia o professor Dahdah.

Após a visita, foram necessários cinco anos para os esboços tornarem-se uma quase realidade. Parte das obras chegou até a ser inaugurada. Mas a eclosão da Guerra Civil do Líbano, em 1975, enterrou de vez as ambições modernistas da cidade e do país. Em Trípoli, conta-se que o complexo foi usado por diversas milícias étnicas que combatiam entre si. Durante algum tempo, o que seria o Museu do Espaço foi usado como depósito de armas pelo Exército da Síria, chamado a intervir no conflito que se arrastou por 15 anos. A guerra impediu que criador visitasse sua criatura, esquecida.

— Na memória de Niemeyer, o que ficou foi um mês divertido que ele passou no Líbano e acabou. Como demorou para ser construído e o projeto nunca foi completado, não entrou no imaginário afetivo dele, afinal, ele tinha outros 600 projetos com que se preocupar. E isso não é uma figura de linguagem — ressalta Dahdah.

Especialistas libaneses garantem que o complexo faz parte do imaginário coletivo do país. Hoje, fechado pelas autoridades locais, o acesso é possível somente àqueles que se arriscam a passar pela brecha de uma cerca para um passeio proibido. Ou pagando-se uma “gorjeta” pela boa vontade do guarda que faz a segurança. Dentro do domo do museu, restam a escuridão e ferros retorcidos sob o teto inacabado. Do lado de fora, pode-se encontrar marcas de tiros trocados durante a guerra. Apenas um escritório funciona ali: um centro de registro de refugiados, montado pela ONU para receber diariamente centenas de civis sírios que chegam fugindo dos horrores da guerra civil, agora instalada no país vizinho.

Mas, se há algum desejo de preservação, a crônica instabilidade política na região leva à falta endêmica de recursos. Em 2006, a ONG americana Fundo Mundial de Monumentos colocou a Feira Internacional Rashid Karami em sua lista bienal das cem esculturas mais ameaçadas do mundo. Nada foi feito. À época, aliás, surgiram os últimos projetos para revitalizar a área. Uma empresa da Califórnia cogitou fazer um parque temático, mas a ideia foi abandonada quando, em julho daquele ano, Israel e o grupo xiita libanês Hezbollah travaram uma guerra de 34 dias que afastou os investidores. Pouco depois, a estatal chinesa Chinamex propôs às autoridades libanesas fazer ali um centro de distribuição comercial. O plano, porém, foi abortado definitivamente em 2007, quando o Exército do Líbano travou prolongado embate com o grupo Fatah al-Islam, franquia da rede al-Qaeda que dominava o campo de refugiados de Nahr el-Bared, ao Norte de Trípoli.

Há quem celebre o fracasso dessas iniciativas e defenda uma avaliação mais profunda sobre o destino do complexo. A última tentativa de revitalização é do coletivo Suspended Spaces, criado para unir 24 artistas libaneses e europeus em busca de entendimento multidisciplinar da arquitetura local. O grupo tem feito debates e seminários de olho no futuro que Niemeyer previu e não viu.

— Nos últimos dois ou três anos, há um novo interesse do mundo artístico pela feira— afirma Lamia Joreige, diretora da galeria Beirut Art Center, na capital libanesa. — A questão da arquitetura aqui é muito delicada, pois muitos lugares devastados pela guerra são restaurados. Este é diferente. É um lugar que tem uma força silenciosa, não fala uma linguagem funcional, mas persiste. É uma infraestrutura que se recusa a sucumbir ao tempo.

A dúvida entre destruir e preservar persiste. Com o Líbano, mais uma vez, imerso numa crise regional graças à proximidade da turbulenta Síria, a arte de Niemeyer pode significar um registro sólido do que a guerra civil destruiu. Ou as aspirações do Líbano moderno que Trípoli jamais conheceu. Por ora, a obra acabou, mesmo, transformada numa ruína de luxo.

Fonte: G1

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