Artigos

CAU Educa: Inundação e Alagamento em Belém

Texto da dissertação e livro homônimos: A ilusão da Igualdade: natureza, justiça ambiental e racismo em Belém

Autoria de: Thales Miranda – Arquiteto e Urbanista. Mestre em Arquitetura e Urbanismo. Doutorando na UFPA. Conselheiro suplente do CAU/PA. Ganhou o prêmio de melhor dissertação da área de planejamento urbano e regional do Brasil em 2021.

A água na cidade apresenta uma miscelânea de funções, apropriações e percepções que são historicamente e socialmente construídas. Como aponta Ponte (2010), a água é parte da paisagem; é veículo que transporta pessoas, mercadorias e resíduos; é recurso econômico; e substância que possui matéria e formas físicas. Para além do planejamento urbano, a água é o lugar do sagrado, da poesia, da vida e morte, do imaginário e dos marcos territoriais, sociais e ecológicos. A presença da água nas cidades é o lugar da contradição, do invisível que surge quando menos se espera ou do visível despercebido e camuflado. Paradoxo é uma das características da relação entre água e cidade.

 

Figura 01: Vista do centro de Belém a partir da Baía do Guajará

Figura 01: Vista do centro de Belém a partir da Baía do Guajará
Foto: Marcus Galvão (2023)

 

A água e o relevo plano foram fundamentais para dinamizar a ocupação territorial de Belém (MOREIRA, 1966). A cidade foi fundada em 1616 pelos portugueses para proteger o território da ameaça de ocupação de outras nações, que hoje compõem a Europa. O ponto estratégico foi o vértice do estuário Guajarino (Baía do Guajará), contornado pelo Rio Guamá e pelo Rio Pará (MOREIRA, 1966), em terras ocupadas pelos indígenas Tupinambás (COSTA, 2014) e próximas às outras aldeias indígenas, ao longo do que hoje considera-se nordeste paraense (SOUTO, 2017).
A cidade cresceu por meio de aterramentos e dragagem de áreas inundáveis, retificação de cursos d’água, impermeabilização do solo, supressão vegetal e por processos socioeconômicos e decisões políticas que determinaram as áreas e as pessoas que poderiam sofrer determinados impactos ambientais quais pessoas seriam excluídas das políticas de planejamento urbano e as ações de ordenamento territorial, constituindo grande parte da periferia. Todas essas são características urbanísticas e ambientais similares às grandes cidades do Brasil.

No entanto, Belém é uma cidade amazônica à beira de um rio e, por isso, tem grande parte do território constituído de planícies de inundação, que segundo Miranda (2023), é composta por 73% (693.151) de pessoas negras e 65% (611.432) constituem pessoas com renda entre 0 a 2 salários mínimos. Além do dado sociorracial, os dados geomorfológicos demonstram que Belém tem relevo plano (com pouca variação de cotas altimétricas); declividade baixa (com média de 0,64%, mínima de 0,16% e máxima de 2,9%) (PONTE; BRANDÃO, 2015); e é uma das cidades do Brasil com os maiores índices pluviométricos. Ou seja, há água por toda parte na cidade, mas uma parcela específica sofre muito mais os efeitos negativos da água e sua falta de gestão adequada.

Territórios com declividade baixa e relevo plano, como em Belém, têm dificuldade para escoar as águas pluviais, pois a velocidade das águas é menor e assim formam naturalmente grandes porções de terras inundadas. A inundação ocorre quando há o transbordamento das águas dos cursos d’água (naturais ou artificiais) ou qualquer outro corpo d’água, como lagos, açudes e reservatórios (MCGRAW-HILL, 2003). As causas das inundações podem ser várias, como: precipitações intensas e marés altas (preamar), rompimento de barragens, estrangulamento ou estreitamento dos cursos d’água em determinadas áreas, saturação do lençol freático, dentre outras (CASTRO, 1998).

Para Belém, a inundação ocorre naturalmente no território, mas é agravada devido ao modo de urbanização que desconsiderou e ainda desconsidera a água como norteadora no planejamento e nos projetos da cidade. Expulsar, esconder e tentar apagar água da cidade é o mecanismo mais utilizado nas engenharias e urbanismo na produção do espaço urbano. Ações paradoxais em um ambiente sensível à água.

A inundação não é a única dinâmica relacionada à água em Belém, há também o alagamento. Este está relacionado à deficiência da rede de drenagem urbana que não suporta a quantidade de água pluvial, por isso tem dificuldade para escoá-la (CASTRO, 1998). As causas para o alagamento podem ser várias, como: ausência de infraestrutura urbana ou rede de drenagem; mau dimensionamento das redes de micro e macrodrenagem; obstrução dos canais de drenagem (cursos d’água) que impedem o fluxo da água; e não adequação de técnicas alternativas de drenagem urbana para a realidade de uma cidade com o relevo plano, declividade baixa e alta impermeabilização do solo (GRILO, 1992).
A figura abaixo apresenta uma reportagem de fevereiro de 1989 sobre os transtornos ocasionados pelos alagamentos. Nota-se no texto da reportagem que as ruas que se localizam na parte baixa da cidade alagaram e que os cursos d’água da periferia de Belém transbordaram (inundação). São dois processos distintos, mas que se coincidiram devido à deficiência ou ausência da rede de drenagem urbana que não apresentou estratégias eficientes à mitigação/redução da inundação natural dos cursos d’água e não adequou as redes de drenagem urbana para escoar as águas pluviais, o que ocasionou alagamentos e inundações.

 

Figura 02: Reportagem sobre chuva e alagamento em Belém na década de 1980

Figura 02: Reportagem sobre chuva e alagamento em Belém na década de 1980
Fonte: Jornal O Liberal de 18/02/1989. Disponível em: http://1amao.blogspot.com/2020/02/quando-o-asfalto-vira-rio.html

 

Nas áreas mais baixas do território, no qual há cursos d’água próximos é comum que inundação (ex.: transbordamento de rios) e alagamento (ausência ou mau dimensionamento da rede pluvial) ocorram simultaneamente (ver figura 03). Em áreas mais altas e longe de cursos d’água, geralmente ocorre o alagamento das vias devido há vários fatores, entre eles, a falta de manutenção da rede pluvial, o dimensionamento inadequado da rede que não acompanha a urbanização do entorno (ver figura 04).

 

Figura 03: Rua Fernando Guilhon, bairro do Jurunas, Belém

Foto: Taynara Gomes (2020)

 

Figura 04: Alagamento na Avenida Arterial 18, bairro Cidade Nova, em Ananindeua (Região Metropolitana)

Fonte: Sidney Oliveira (2021). Acesso em: https://www.oliberal.com/belem/chuva-forte-veja-os-pontos-de-alagamento-na-grande-belem-1.457801

 

Observa-se que de maneira geral, Belém e parte de sua região metropolitana apresentam alguns padrões topográficos similares, como o relevo plano constituído por inúmeros cursos d’água e a declividade baixa. Assim, grandes porções de terra com características geomorfológicas como as de Belém deveriam ter a ocupação e o uso do solo mais adequados ou adaptados para sua condição de suscetibilidade às inundações periódicas.

As possibilidades de ocupação da planície de inundação de Belém poderiam abranger extensas áreas permeáveis através de um sistema de áreas livres para usos recreacionais, convívio social e agricultura em pequena escala com porções de áreas vegetadas. A baixa densidade construtiva e populacional poderia contribuir para a permeabilidade do solo e reduzir os riscos ambientais decorrentes das inundações. Para regiões de alta permeabilidade do solo, compatibilizar estratégias convencionais (estruturais) de engenharia com alternativas/compensatórias/compreensivas (infraestrutura verde, soluções baseadas na natureza, desenho urbano sensível à água) poderiam atenuar os efeitos negativos da água no ambiente urbano.

Estas soluções são possíveis quando há outro paradigma de políticas públicas e planejamento urbano que busque justiça ambiental no ordenamento territorial e não esteja cooptado por uma suposta dominação da natureza e pelas forças de mercado que ultrapassam os limites ambientais. A água está no território há muito tempo e nós que criamos o paradoxo e não sabemos o que fazer com ela, por isso, que tal começar por uma política de regulação de uso e ocupação do solo que tenha a bacia hidrográfica como unidade de planejamento? E quem sabe, olhar ao redor e entender como funciona o território amazônico e suas dinâmicas ambientais, sociais e econômicas.
Qual é a Belém que queremos neste século XXI?

Referências
CASTRO, Antônio Luiz Coimbra de. Glossário de defesa civil estudos de riscos e medicina de desastres. Brasília: Ministério do Planejamento e Orçamento, 1998.

COSTA, Graciete Guerra da. As cidades amazônicas na américa portuguesa. EXAMÃPAKU, v. 7, n. 2, 2014.

GRILO, R.. A precipitação pluvial e o escoamento superficial na cidade de Rio Claro/SP. 1992. 103 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geociências e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro.

MCGRAW-HILL. Dictionary of Environmental Science. New York: McGraw-Hill, 2003. DOI: 10.1036/007143397X

MIRANDA, Thales Barroso. A Ilusão da Igualdade: natureza, justiça ambiental e racismo em Belém. São Paulo: ANPUR, 2023

MOREIRA, Eidorfe. Belém e sua expressão geográfica. Belém: Imprensa Universitária/UFPA, 1966.

PONTE, Juliano Pamplona Ximenes. Cidade e água no estuário guajarino. 2010. 339 f. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

PONTE, Juliano Ximenes; BRANDAO, Ana Júlia. Urban drainage in the Metropolitan Region of Belém, Brazil: an urbanistic study. In: AO, Sio-Iong; HOI-SHOU CHAN, Alan; KATAGIRI, Hideki; XU, Li. (Org.). IAENG transactions on Engineering sciences. Special issue for the International Association of Engineers Conferences. Singapura; Londres; Hackensack: WCE; IMECS, 2015. p. 358-371. DOI: https://doi.org/10.1142/9789814667364_0027

SOUTO, Alanna. Os indígenas na cartografia da América lusitana. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 12, n. 3, p. 817-837, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/1981.81222017000300009

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

OUTRAS NOTÍCIAS

CAU Brasil lança portal de formação continuada para profissional de arquitetura e urbanismo

FIQUE ATENTO AS NOVIDADES DO CONCURSO: PRÊMIO CASA 2022

Centro de SP tem exemplos de recuperação de áreas como saída para falta de moradia

Pular para o conteúdo